Wednesday, October 25, 2006

Monday, October 23, 2006

TEMPORAL

Final de tarde de dezembro. O tempo ficou bonito para chover. As nuvens carregadas de azul-escuro pareciam estar prestes a serem furadas pelo crucifixo, na ponta da torre da igreja. O vento, com seu cheiro de chuva, batia em meu rosto e me causava uma sensação gostosa. Foi quando surgiu na calçada meu colega de rua, Zé Lira, que segurava uma lata de querosene e, angustiado, me chamou para ajudá-lo a pegar a lavagem dos porcos, no restaurante do seu tio. Eu devia ter uns seis anos de idade e nem me passou pela cabeça que meu pai estava para chegar do trabalho.
Sai correndo em meio àquela tempestade que se prenunciava. Foi tudo muito rápido, voltei alegre e até gritando na chuva, de tanta felicidade.
Meu pai me esperava na porta com uma “cara” de raiva e com uma voz áspera que jamais vou esquecê-la. Sua habitual expressão de zangado, me impunha um medo paralisante. Acovardado, nem conseguia falar. Mal botei o pé dentro de casa, fui sacudido pelo peso de sua mão que me acertou o chapéu de couro em minhas costas. Não lembro muito bem o que ele rosnava, sei que sua força era brutal e seus gestos coléricos. Sua mão me empurrava para o centro da sala e o estalar do chapéu soou por muitas pancadas. A casa escura e triste parecia mal-assombrada. Meus olhos rígidos, os dedos finos e os lábios trêmulos denunciavam-me indefeso.
Somente mamãe seria capaz de me socorrer daquele suplício. Ela estava na casa de vovó. Se, pelo menos, eu tivesse corrido, apanharia em outra hora, não teria problema, mamãe estaria por perto e saberia o limite de uma surra. Ou, quem sabe, eu tivesse ficado no campo, jogando bola, quando a chuva passasse, voltaria escondido. Mas, não era da minha natureza fugir.
Continuei apanhando por toda a extensão do corredor frio, quartos lúgubres cheiravam a mofos e o teto em ruínas em que pendiam casas-de-aranha. A cada chibatada eu caía, caía e não chorava e isso aumentava a sua fúria louca. Lembro-me que, com sua voz rouca, ele gritava: “Chora cabrito”.
Não sei porque eu não conseguia chorar. O choro estava longe – e continuou longe por muitos anos de minha vida. Não sabia porque apanhava e muito menos tive a oportunidade ou coragem em perguntar.
Tento juntar aquele quadro em que era açoitado e não consigo captá-lo em sua totalidade. O homem gritava de ódio e seus berros ecoavam por toda a casa, como num filme de terror. Fui arrastado para o quintal da casa e, a pretexto de me dar banho, ele bateu várias vezes com minha cabeça na parede. O sangue começou a escorrer pela testa, banhando todo o meu rosto. Sua raiva não lhe deixava ver. Nesse momento, Maria, a empregada, botou a cara na janela da cozinha e me suplicou: “Chora meu filho... chora, por favor”.
Ouvi os passos de mamãe no assoalho da sala e logo saiu seu grito sem forças de uma mulher cansada e doente, desanimada da vida pelo próprio semblante, para, em seguida, cair com todo o corpo no chão. Pensei que ela estivesse morrendo e corri para ampará-la. Maria veio com um copo d’água e percebi que ela tinha desmaiado. O homem ficou com medo e a levantou em seus fortes braços. Aproveitei e sai de cena.
Vinte anos depois, as feridas quase cicatrizadas pelos carinhos de mamãe e por sua compreensão que me pedia para esquecer as grosserias e as indiferenças do meu pai, eu enfrentava as circunstâncias de um momento delicado na história do país, cursando o último ano da Faculdade de Direito. Era o período negro da Ditadura Militar que se instalara no Brasil, há quase duas décadas. O Movimento Estudantil Universitário, como vanguarda da sociedade civil, se estrebuchava, fazendo passeatas, promovendo debates, confeccionando seus próprios jornais, enfim, se definindo do ponto de vista ideológico.
Um dia após a manifestação de apoio ao primeiro de maio, Dia do Trabalhador, fui preso, interrogado e torturado – de forma racional e mais perversa do que apanhara quando criança – pela Polícia Federal, a serviço do regime de exceção. A notícia se espalhou. A Igreja Católica e a Ordem dos Advogado do Brasil denunciaram e as famílias, dos estudantes encarcerados, fizeram vigília na catedral de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, no centro da cidade, em sinal de protesto.
Fiquei sabendo, por intermédio de mamão, que em conversa com meu pai, em que ambos choravam, ele comentava sobre minha prisão: “ele deve estar sofrendo muito, porque está apanhando e não fala”.
Nunca me explicaram o motivo pelo qual me prenderam. Suponho que seja o mesmo porque meu pai me batia. Acho que fazer uma revolução deve ser tão puro, natural e gostoso quanto tomar banho de chuva, ainda que debaixo de uma tempestade.

* * *

A FREIRA

Chegou na cidade de Senador Pompeu, no início dos anos oitenta, o padre italiano, Albino Donnati. Veio para ser o novo vigário da cidadezinha encravada no Sertão Central cearense. Em sua companhia vieram várias irmãs, todas advindas do Rio Grande do Sul, com ascendências européias. Olhos claros, pele do rosto rosada e aquele sotaque chiado com “erres” e “esses” cantados, denotavam suas diferenças da maioria dos nativos cabeças-chatas. O padre Albino realizava um trabalho pastoral ligado à Teologia da Libertação. As irmãs se revezavam, tomando conta da Secretaria da Paróquia, da creche e da escola de artesanato.
As freiras eram pessoas encantadoras, de grande capacidade de trabalho e uma enorme sensibilidade social. Cativavam a todos, especialmente os pobres, com suas soluções simples, ainda que assistenciais. A irmã Ana Paula, então, era de uma beleza rara, olhos da cor de violeta escura, andar discreto, mas impossível de não revelar a escultura formosa de seu corpo. Ela estava à frente do Departamento de Pessoal da Secretaria da Paróquia. Morava eu vizinho à casa paroquial e era um recém formado em advocacia. Portanto tornei-me um privilegiado admirador do trabalho das irmãs e um observador, ainda que tímido, de suas belezas. Embora minha formação católica não admitisse aqueles meus pensamentos, que felizmente não me fizeram estragos psicológicos, eles eram inevitáveis.
Em uma tarde de verão, daquelas modorrentas em que ao longe parece sair fogo da terra, e quase ninguém anda nas ruas, adentrou em meu escritório um misto de mulher e santa: era a irmã Ana Paula. Balbuciei um “bom tarde” visivelmente nervoso. Ela queria tirar algumas dúvidas sobre direitos trabalhistas, a fim de evitar alguma questão judicial. Depois de minhas explanações teóricas, perguntei-lhe de chofre: “Quando e por que de sua vocação?” Antes, naturalmente, desculpei-me por tais intimidades. Ela não se intimou, pelo contrário, estava bem à vontade e confessou-me advinhar meus pensamentos, pois, tinha certeza de que eu iria lhe fazer essa pergunta. Disse-me ainda que estava, por antecipação, ansiosa por respondê-la.
Ouvi a história a seguir. Aos vinte e dois dias de nascida lhe foi diagnosticada meningite. Levada à presença do médico, seu corpinho frágil dava sinais de enrijecimento. O doutor foi brusco e responsabilizou seus pais por trazê-la em estágio avançado da doença. Aplicou-me uma injeção e disse-lhes, em tom seco e forte, que caso a mesma não reagisse em trinta minutos, podiam comprar o caixão e encomendar o enterro. Diante da rudeza daquelas palavras, sua mãe em desespero, começou a chorar. Olhava para aquele delicado e tenro corpo, inerte como a morte e procurava rezar. Era a única coisa que lhe restava, e não conseguia. Sua memória estava confusa, não lhe era possível lembrar uma ave-maria, santa-maria ou pai-nosso. Nesse momento, ela humildemente pediu desculpas a Deus por não saber rezar. Ao levantar a cabeça, avistou uma imagem de Nossa Senhora, dessas de calendário, e passou a conversar, em silêncio, com a Santa, pediu-lhe que levasse sua filha para o céu e tomasse conta dela. Nesse instante, como que por milagre, a criança começou a chorar, estava salva.
Cresceu sadia e bela. Interessante é que suas brincadeiras de infância eram todas voltadas para temas religiosos. Todos em sua família achavam ser a menina influenciada por um seriado de televisão chamado “A Noviça Rebelde”. O tempo passava e ela ficando mocinha, sempre com suas diferenças. Não gostava de baile, não tolerava certos assuntos de adolescentes apaixonadas, enfim, pouco saía de casa. Até que um dia, ela disse para sua mãe que estava se correspondendo com uma Irmã das Pobres Servas da Divina Providência. Depois de uma longa conversa entre mãe de filha e a direção do convento, ficou acertado o ingresso de sua filha como aspirante à freira.
Passados alguns anos, na cerimonia de renovação dos votos da irmã Ana, sua mãe chamou-a em direção ao jardim do mosteiro e lhe contou sobre sua doença e sua entrega a Nossa Senhora. A irmã ficou perplexa e quis saber por que sua mãe não lhe contara antes. Ele respondeu-lhe que não queria influenciar em sua decisão, mas, que desde criança, percebera sua inclinação para seguir a vida religiosa.
Ao fim da história, trocamos um longo e profundo olhar em silêncio, e rolaram lágrimas em nossos rostos.

* * *

LETÍCIA

‘Ama-me, mas não fique zangado quando eu for também gentil com outros homens’. Asclepíades.

A trágica história da bela e formosa moça, nascida no distrito de São Joaquim, nunca foi digerida pela sociedade senadorpompeuense por puro preconceito. Suas aventuras e seu destino não podem ser analisados pelo ângulo de uma convulsão doméstica. Sua época remonta mudanças significativas nos costumes sociais, políticos e psicológicos da sociedade brasileira dos anos cinqüenta e sessenta. Suas origens de menina pobre em confronto direto com sua consciência de mulher bonita e desejada, instigaram-lhe a ambição de conquistar o palco da vida com “glaumour” e muitos romances.
Como resquícios dos pactos entre famílias antigas, Letícia foi quase que doada para casar-se com um rapaz bem mais velho, porém, em condições de sustentá-la. Não foi uma união forçada, também não foi por amor na acepção romântica, livre e sonhadora de quem encontra seu príncipe encantado, sua cara-metade. Foi um enlace arranjado à espera de que o tempo trouxesse-lhe sensatez, quem sabe amadurecimento e, por um verdadeiro milagre, felicidade. Essa era a expectativa das famílias nordestinas que casavam seus filhos. É que existe uma maioria de jovens do sexo feminino em razão do êxodo rural dos rapazes que vão a São Paulo em busca de emprego. Portanto, quando é realizado um bom casamento, é nosso costume dizer que ‘a moça saiu do caritó’, ‘foi desencalhada’, em outras palavras, os pais cumpriram com o dever e lhe deram segurança.
Letícia saiu da roça para o bangalô, como se dizia na linguagem de outrora. Não havia do que reclamar, sua casa tinha de um tudo. Quando na cidade de Senador Pompeu não tinha energia elétrica, em sua casa tinha geladeira a gás, aliás, poucas famílias possuíam geladeira. A televisão estava posta na sala de visita à espera da instalação da energia da cachoeira de Paulo Afonso. Sua mesa era farta, comia-se carne todo dia, tanto no almoço como no jantar. Sua casa era um luxo, seus móveis estavam sempre limpos. Seu marido era um provedor sem falhas, era o que todos diziam.
Estranhamente, dessa união não nasceu herdeiro. Se imaginar a mentalidade cultural e machista do homem nordestino de então, conclui-se que seu marido vivia desgostoso. Engano. Nunca demonstrou nenhuma insatisfação a respeito dessa questão. Claro que ele desejava que ela lhe desse filho, mas o amor que nutria por sua bonita e formosa mulher era mais importante, nada lhe abalava. Por ela, pelo seu carinho e seu amor, ele viveria sem a necessidade de filhos. O envolvimento voluptuoso e sensual de sua amada lhe bastava.
A mesmice doméstica de sua vida estava lhe deixando entediada. Seu marido era camioneiro, vivia constantemente ausente do lar, pouco compartilhava de seu mundo. Vida social não lhe era permitida, ir às festas, nem pensar, ele estava sempre muito cansado. Vivia numa semiclausura, muitas vezes acometida de uma imensa tristeza, tinha momentos que pensava que iria enlouquecer. Tantas mulheres desejavam estar em seu lugar e porque tanta insatisfação se tinha um bom esposo, um excelente lar e gozava de boa saúde? Não encontrava respostas. Talvez estivesse precisando rezar. Até que, quando rezava, sentia-se calma. Mas, aquela angústia voltava e parecia não lhe deixar em paz. Algo súbito apertava-lhe o peito, às vezes sufocando-a, até lhe deixar gélida, outras, ficava tonta, com espasmos, com suores frios que chegava a desmaiar.
Um dia não suportando aquele mal estar no corpo, mandou chamar um médico para consultá-la, em sua própria casa, como era o costume da época. O doutor veio, tirou-lhe a pressão, auscultou-lhe por intermédio do estetoscópio, apalpou-lhe algumas partes de seu corpo, fez-lhe algumas perguntas e descobriu que suas crises eram de origem psicossomática. Resolveu receita-lhe um antidepressivo. O médico ficou impressionado com a forma escultural daquele corpo. Era impossível sua beleza passar desapercebida por quem quer que fosse. Uns quinze dias depois, ela procurou o médico, desta vez em seu consultório. O remédio vinha fazendo efeito, seu humor melhorava, sua pressão estava ótima. Ela queria saber se podia continuar com a medicação e por quanto tempo. Ele disse que continuasse tomando os comprimidos por mais trinta dias e, depois, queria vê-la. Imediatamente, ela marcou a próxima consulta para sua residência.
Os dias voaram-se ansiosamente. Na data marcada, as dez horas e trinta minutos da manhã, sua empregada foi atender à porta, era o médico. Ela estava no quarto, a criada disse-lhe que podia entrar que sua patroa o aguardava. Ele empurrou levemente a porta e o espetáculo que viu deixou-o meio desconcertado. Letícia estava de camisola transparente e apenas de calcinha por baixo. Era um verdadeiro monumento à beleza, sorriso de maliciedade ingênua e um olhar de sensualidade diabólica a toda prova. O doutor deu-lhe um bom dia nervoso, sentou-se na beira da cama e procurou abrir sua maleta com o intuito de tirar-lhe a pressão, ela deu-lhe um pouco as costas, induzindo-o a ser auscultada, em silêncio, ele entendeu e mudou de instrumento. No primeiro toque em seu corpo ela suspirou e virou a cabeça em direção ao rosto do médico, ficaram a poucos centímetros um do outro, ele sentindo sua respiração, aquele olhar hipnotizante decretou-lhe um beijo na boca de vários minutos. Como se fosse tudo premeditado, trocaram carícias e, ali mesmo, fizeram sexo proibido como nunca antes podiam imaginar.
Os motores de óleo diessel que geravam energia para a cidade eram desligados às vinte e duas horas. Toda semana, com exceção das noites em que seu marido dormia em casa, ela recebia a prazerosa visita de seu doutor. Ele esperava as luzes se apagarem, deixava seu carro a uns dois quarteirões e dirigia-se a pé para a casa de sua amante, saindo de lá às três e meia da madrugada. Uma certa noite de inverno, com chuva, trovões e relâmpagos, por volta das doze horas, em companhia de seu amado que dormia, ela escutou o ronco do motor de um caminhão e percebeu que era o seu marido, chegando de viagem. Imediatamente avisou ao médico que saísse pelos fundos da casa, ainda deu tempo de acompanhá-lo no escuro até a porta e voltar apressada para sua cama e se fazer que estava dormindo. Seu marido tinha a chave da porta da frente que era para não importuná-la. Chegou cansado e todo molhado, estava tirando a roupa quando ouviu um estrondo vindo do quintal, como todo camioneiro prevenido, pegou o revólver e, apenas de cuecas, foi verificar o que ocorreu. Por uma fração de segundos o doutor teria sido pegue como ladrão de galinhas, é que ao tentar pular o muro do quintal no escuro, ele pisou em cima do chiqueiro das galinhas, deixando-as assustadas. Em seguida, correu e conseguiu entrar num beco onde existia uma pequena serraria de fazer caixão de defuntos, foi a sua salvação, com o marido de sua amante em seu encalço, ele abriu a tampa de um caixão e se fez de morto.
Depois desse episódio o médico mandou-lhe um bilhete em que dizia ter medo de morrer, que era muito jovem, pedia sua compreensão e que precisava dedicar-se mais a sua profissão, pois temia um escândalo. Nunca mais a procurou. Ela ficou bastante tristonha e achou a atitude de seu amante covarde. Um dia, de tardinha, a empregada tinha saído, a porta da frente estava fechada, ela, sozinha em casa, foi para o quintal e começou a chorar. Pela manhã havia chovido, o tambor que aparava água da bica estava cheio, ela resolveu tirar a roupa e tomar banho de cuia. A água fria descia pelo seu corpo e lhe dava uma ótima sensação, ela percebeu que um rapazinho, filho da vizinhança, masturbava-se em cima de um pé de siriguela que ficava por trás de seu muro. É interessante como essa situação lhe dava prazer. Como combinado, num jogo de ‘voyeur’, várias tardes ela repetiu a cena do banho somente para dar prazer ao imberbe onanista. No íntimo, ela desejava que o rapazinho viesse até sua casa, mas o que fazer se quando ela o via, ele ficava todo encabulado?
Sem suas aventuras extraconjugais a vida estava cada vez mais monótona. Queria paz antes que a ansiedade tomasse conta dela novamente. Procurou o padre na residência paroquial com a intenção de se confessar. Ao entrar na casa paroquial, o padre lançou-lhe um olhar sobre todo seu corpo. A princípio, pensou que o vigário fosse lhe repreender, mas logo verificou que sua roupa era bastante discreta, sem decotes. Queria mesmo se confessar. O padre disse-lhe que fizesse um chá que às vinte horas iria na sua casa.
Por esse tempo, seu pai andou em sua casa acompanhado de um fazendeiro das bandas de São Joaquim, o homem estava interessado em comprar uma casa em Senador Pompeu. Apesar do seu nome ser João Pequeno, ele era alto, forte, moreno e caprichava num bigodinho que lhe dava uma certa aparência jovial. Quando João Pequeno avistou Letícia ficou encantado com a formosura da filha de seu vizinho. João Pequeno era homem acostumado a ter várias amantes. Fez outras visitas à Letícia, sem a companhia de seu pai e na ausência de seu marido. Terminou alugando uma casa na mesma rua, a umas dez casas dali. Seu objetivo era colocar seu casal de filhos para estudar nos bons colégios de Senador Pompeu. Estava sempre arrumando pretexto para visitar seus filhos e ir à casa de Letícia na boquinha da noite.
Tanto as visitas do padre como as do João Pequeno ocorriam quase toda semana. Nunca coincidia de os dois irem na mesma noite e, muito menos, quando seu marido estivesse em casa. O povo já fazia comentários maledicentes, o padre foi o primeiro a saber, e logo tornou suas visitas clandestinas e esparsas. João Pequeno, então, nunca mais foi visto entrando em sua casa. Os comentários arrefeceram-se.
Nas cidades do interior a fofoca tem o poder de quebrar o marasmo de uma vida simples e sem grande novidade. Fofoca-se sobre tudo, desde uma questão séria até a uma pura mentira. Por esses tempos, correu uma lista com os nomes dos possíveis cornos de Senador Pompeu, nessa relação constava, entre outros, o nome do marido de Letícia. Se ele soube de tal assunto nunca lhe fez menção. Era de seu estilo ser calado, introspectivo. Através de sua empregada, ela soube desses boatos sobre ‘chifrudos’, sozinha deu boas risadas. Na frente de seu marido, na hora do almoço, era de um silêncio indecifrável, gesto estudado e falso, postura cheia de mistério, talvez temesse um olhar interrogativo de seu marido.
O caminhão ford novo estava carregado e impecavelmente limpo, era de fazer gosto, como tudo de seu marido, bom gosto era o que não lhe faltava. Ia viajar. Saía ao entardecer, pois viajar durante a noite era melhor para o motor e economizava os pneus. Naquela tarde, jantou mais cedo, despediu-se de sua mulher e disse-lhe que voltaria daqui a uma semana. Ela o acompanhou até a porta, não esperou o caminhão dar partida, fechou-a e entrou para terminar de lavar a louça. Ele entrou no carro e viu uma carta em cima de seu assento, colocou-a no banco do passageiro, ligou a chave, deu marcha e dirigiu-se ao posto para abastecer de óleo diessel. No posto, olhou para o envelope e verificou que o mesmo estava fechado, sem o nome do remetente nem o endereço de entrega, achou esquisito. Vez por outra, alguém lhe pedia para levar carta para Fortaleza, ele nunca se negara, mas aquela carta era estranha, resolveu abri-la e leu em letras garrafais: “Não se faça de tolo, volte para sua casa depois da meia noite e você encontrará surpresas, assinado; um amigo”. Leu e releu diversas vezes. Por um momento, chegou a sentir um certo mal estar. Nunca havia lhe passado pela cabeça que um bilhete tivesse a força de uma facada no coração, era assim que estava se sentindo. Refez-se, pagou ao bombeiro e continuou sua viagem. Estava perturbado, não conseguia tirar o pensamento daquelas letras. Seria trote? E se não fosse? Rezou a São Francisco, seu santo de devoção, e rogou que o acalmasse, lhe desce força e inteligência para resolver aquela difícil situação. Decidiu que não tinha condições de prosseguir viagem. Chegou ao distrito do Bonfim, a vinte quilômetros da cidade, estacionou o carro próximo a uma churrascaria, esperou as horas se passarem e fretou um carro de praça de volta até Senador Pompeu.
Chegou próximo à sua casa, era mais da meia noite. Caminhou de passos leves pelas calçadas iluminadas pela lua cheia. Em frente a sua residência, olhou pelo buraco da fechadura e notou que havia luz de lampião acesso na sala da cozinha. Apressou-se em abrir a porta e fez algum barulho, entrou de revólver em punho, notou que sua mulher corria chorando para o banheiro. Em cima da mesa tinha garrafas de cerveja e muitos pedaços de ossos de galinha, além de muitas pontas de cigarro. Ele não fumava e nem bebia. Foi ao quarto e encontrou sua cama em completo desalinho, cheiro de perfume no ar e sua mulher trancada dentro do banheiro. Ele não dera uma única palavra. Dirigiu-se à sala de visita, armou uma rede e deitou-se. Não conseguiu dormir. Ouviu quando sua mulher saiu do banheiro e foi limpar a sala.
Ao amanhecer ele estava de pé. Esperou que ela fizesse o café e lhe disse para arrumar as suas malas, com roupas e tudo que ela pudesse levar, que eles iriam à casa de seu pai. No trajeto até São Joaquim não trocaram uma palavra. Ao chegar na casa de seu sogro, ainda cedo, causou espanto. O velho foi logo perguntando o que aconteceu. Ele sentenciou: “sua filha não me serve mais, tirei de sua casa, é meu dever lhe entregar em sua casa. Se ela quiser que conte o motivo”. Letícia não conseguia olhar para seu pai, estava imóvel e de cabeça baixa, sem chorar. O velho entendeu a situação, tirou o chiqueirador e deu-lhe uma pisa que a encheu de vergonha. Ele não quis presenciar aquela cena, entrou no carro, sem se despedir de ninguém e foi embora.
Posteriormente, soube-se que ela tinha ido para São Paulo. Trabalhou na noite paulista, foi dançarina e cantora de cabaré. Bebia muito e enveredou-se com algumas drogas. Não alcançou sucesso. Teve vários tipos de amantes, no início com artistas de menos expressão, cantores decadentes e empresários de casas de shows que mais pareciam gigolôs. Depois, sentiu-se rejeitada, tanto como cantora, quanto como mulher, o que era terrivelmente triste. Passava horas diante do espelho, estava ficando velha, com muitas rugas, não podia negar. Sabia que não era uma boa cantora. Mas seu poder de sedução, esse nunca falhara. Suas depressões haviam retornado, a bebida com poucas doses lhe deixava encharcada, suas ressacas eram violentas, com dores em todo o corpo e acompanhada de uma solidão de pensamentos tétricos. Chorava com extrema facilidade. Não ganhava o seu próprio sustento. A essa altura, morava de favor com uma mulher que conheceu, fazendo pontos nos bares da vida. Voltar para Senador Pompeu ou São Joaquim e expor o seu fracasso, sua desilusão, sua velhice, era o mesmo que jogar carne podre aos urubus. Sem amizades, sem sucesso, sem amantes, com alguns problemas de saúde, a velhice chegando, a beleza indo embora, com muita saudade de sua juventude, não de sua infância, seus pensamentos começaram a ficar conturbados. Sabia que tinha sofrido nesse mundo comandado pelos homens, mas fez muita gente feliz, outros infelizes e deu risadas histéricas, teve medo de estar ficando louca. Tinha pavor em ficar inconsciente, dando trabalho aos outros, ainda bem que não tinha para quem se envergonhar, não tinha filhos, de sua família sentia falta apenas de sua mãe que estava no céu.
Em uma fria manhã, típica da ‘paulicéia desvairada’ e solitária, exalando álcool por todos os poros, ela foi encontrada enforcada por um fio de náilon em um minúsculo banheiro de um insignificante apartamento de sua colega de noite. Os limites do confinamento físico e mental de um casamento em Senador Pompeu eram antagônicos com o real desejo de brilhar junto às estrelas que a jovem Letícia trazia no coração.